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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Os Três




Saiu do bar do velho amigo pelas duas da manhã. Os dois e mais um, sentados juntos, mas sozinhos em suas mentes, a remoer passados e imaginar futuros, favorecidos pelo álcool ingerido em conjunto. A madrugada o envolvia fria e silenciosa e ele seguiu sozinho e a pé, rumo ao sítio onde vivia. Os outros dois permaneceram no bar.
Minutos depois, num local conhecido como Ventania, ermo, com vegetação rasteira de um lado e uma plantação de algodão do outro lado da estradinha, percebeu a aproximação de um homem que saiu de uma das estradas vicinais. Reconheceu o rapaz como um dos empregados de Cláudio, o marido da mulher com a qual se envolvera.
Discretamente, pegou no cabo do revólver acomodado a cintura.
O homem aproximou-se de forma rápida e pode ver o brilho da faca prestes a cegar seus olhos. Então se virou e atirou três vezes. Apesar do álcool no sangue, conseguiu acertar o homem com um dos disparos: caiu inerte, a mancha de sangue vermelhando a camisa de botões que usava.

O jagunço caiu próximo ao acostamento da estrada. Aproximou-se e percebeu que já estava morto. Arrastou o corpo para um barranco próximo e o arrastou até uma pequena grota.
Olhou em volta. Próximo havia um banco de madeira, usado pelos poucos moradores da região como um ponto de ônibus improvisado. Ao longe, era possível ver as luzes da cidade mais próxima. Ao redor e dentro dele, nenhuma luz.
Sentou-se ali no banco com dois velhos conhecidos que lá já estavam e observavam a cena.
Olhou na direção do rio em frente e disse, sem se dirigir a um dos dois em especial.
-- Essa história não vai acabar nunca. Hoje matei o jagunço do Cláudio. Amanhã virá outro.
-- Foi se envolver com mulher casada dá nisso, né meu caro – respondeu um dos homens, vestido de forma elegante, com camisa de manga comprida e sapatos bem engraxados, elegância escondida sob uma camada de poeira fina.
-- Não foi intencional. Os sentimentos não podem ser controlados. É como uma barragem que pouco a pouco vai sendo preenchida indefinidamente pelos rios. Uma hora, de tão cheia, ela estoura.
-- E já pensou em sair da cidade, levar a mulher contigo? -- perguntou o outro, vestido de forma mais despojada, bermuda e camiseta, apesar do frio.
-- Minha vida é aqui. A dela também. Temos filhos, negócios.
-- E o que pretende fazer?
Nesse momento passou o segundo cliente do bar, arrastando-se sob o peso do álcool. Não viu os dois que ladeavam o companheiro de copo e cumprimentou apenas o cliente amigo. Em seguida, seguiu em direção a própria casa, quilômetros a frente.
Após o homem afastar-se, retirou duas das balas intactas do revólver. Deu uma a cada amigo.
-- Com apenas uma dessas eu resolvo todo esse problema.
-- Está pensando em se matar?
-- Talvez seja a única saída.
-- Porque não mata o marido dela? – perguntou o mais despojado.
-- Não quero ficar com ela dessa forma. O que começou como uma ilha de serenidade, onde podíamos nos abrir um com o outro, não pode acabar envolto em sangue.
Tirou então um cigarro do bolso. O mais elegante o advertiu.
-- O cigarro ainda vai matá-lo.
O homem riu irônico. O outro amigo respondeu:
-- Talvez não seja o cigarro que o mate, afinal.
-- Tô bem de amigo, hein? – reclamou o homem -- Eu só quero preservá-la, entendem?
-- Pense no sofrimento dela e dos filhos se você fizer isso.
-- Eu sou apenas um bom amigo que apareceu num momento em que ela se sentia perdida.
-- Essa sua baixa autoestima é irritante. Você precisa decidir algo. Mas nós dois não podemos interferir, disse o de bermuda.
-- Vocês são meus amigos. Me ajudem.
-- Não somos seus amigos. Somos você. – respondeu o mais despojado, fazendo-se entender de imediato.
O homem virou-e riu. Gostava da impulsividade do “amigo”, companheiro eterno desde o berço. E também da prudência do outro. Era uma dupla que sentiria falta quando partisse.
Nesse momento apareceu um cachorro. Um vira-lata sem dono, adotado pelos funcionários e crianças do colégio onde estavam. O bicho era manso e ofereceu a cabeça para um carinho.
-- Estamos aqui a algum tempo e ele nos ignorou solenemente. Deve gostar de você.
-- Somos invisíveis a ele. – lembrou o mais despojado.
O homem abaixou os olhos e fez um pequeno cafuné no animal. Thor era o nome dele. Lembra-se bem de uma informal eleição que escolheu o nome do bicho, o que foi uma pequena movimentação da vila que pouco tinha a oferecer, mas que era influenciada indubitavelmente pelo mundo externo, o que incluía o cinema de Hollywood. Thor e Trovão foram os finalistas. Venceu a globalização, por uma pequena margem.
Por fim, pegou a arma e a bala, e se afastou em direção ao rio. Ao longe podia ver uma nesga de Sol. Colocou a bala no tambor do revólver.

Os outros dois permaneceram no banco, longe da vista do outro. Não conversaram mais desde a saída dele.
Um tiro foi disparado ao longe.
O mais elegante abaixou a cabeça, triste. Mas em seguida o outro falou.
-- Ele não morreu. Ainda estamos aqui.
O mais elegante entendeu o que se passava e se levantou do banco. O outro o seguiu no gesto. Pouco depois, viram o homem se aproximando.
-- Dei um tiro pro alto. Precisava extravasar.
Passou entre os dois e sentou-se no banco, tirou a bala já deflagrada do revólver e a guardou no bolso da camisa.
-- Por ora, por ora, ficarei aqui. Perdido entre vocês dois. Mas vivo, pensando em uma solução.

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