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segunda-feira, 27 de junho de 2011

Velho companheiro




O aterro sanitário se estendia por uma vasta área plana, já praticamente coberta pelas toneladas de entulho, móveis quebrados (alguns nem tanto), papéis e restos orgânicos, que eram levados para o local durante todo o dia.
Próxima a um riacho, uma grande montanha de dejetos se destacava ao longe. E é para lá que os animais se encaminham. Detêm-se famintos diante daquele monumental depósito de lixo como se fosse um oásis.
Pertencem a várias espécies diferentes e são representantes de toda a cadeia alimentar: insetos, aves, e mamíferos de pequeno e grande porte. Por conta disso cada um deles estuda cuidadosamente cada concorrente: odores, batimentos cardíacos, músculos enrijecidos, tudo é alvo de atenção.






No céu, abutres e urubus voam ansiosamente em círculos; quando percebessem a presença de alguma carniça esquecida no aterro, investiriam imediatamente sobre o cadáver.
As primeiras, contudo, a provarem do enorme banquete foram as baratas e formigas; tendo como vantagem o reduzido tamanho, conseguiram investir até o interior da montanha, onde puderam se deliciar com maior tranqüilidade.
Ratos e cães de rua então se aproximam, vagarosamente; as aves parecem mais confiantes e começam a pousar no aterro. Todos se misturam aos restos de alimentos ali esparramados e, excitados com a visão daquela enorme quantidade de entulho, se aproximam e começam a escalar o monte em busca de mais fartura.
Mas eis que a tranquilidade termina com a chegada de outro animal que, sem estudar os arredores, investe ferozmente contra a montanha. Inebriado, talvez, com o odor de algum alimento ali escondido, parecia tentar atravessá-la. Alguns dos cães, já acostumados com a presença constante daquele velho companheiro no dia a dia, não se amedrontam e o acompanham, tal como se estivessem num verdadeiro banquete comunitário.
Outros animais que ali estavam pela primeira vez, contudo, se assustaram com a violência do predador e recuaram um pouco. Mas a fome os fez permanecer nas proximidades, pesquisando os sacos de lixo recém trazidos por um caminhão, e à espera do afastamento daquele inesperado e perigoso concorrente.
Pouco depois um outro caminhão estaciona nas proximidades. O movimento dos seus ocupantes descarregando entulhos da construção civil assusta os animais, que não estavam acostumados com a presença de pessoas. Eles se afastam do local e resolvem caminhar em direção ao predador, pois, apesar de sua impetuosidade, demonstrava estar mais interessado no conteúdo da montanha do que em fazer-lhes mal.
Pouco depois o caminhão vai embora com os trabalhadores. Em seguida, o predador também se afasta.
É ele conhecido como Carlinhos: tem sete anos e se dirige então ao barraco onde vivia, calçando apenas um pé de chinelo. Na mão, carrega uma lata vazia, cujas bordas afiadas ele percorria ansioso com os dedos e a língua, a procura dos restos de leite condensado endurecido. No chão ele vai jogando insetos que estavam no interior da lata, já apreciando o sabor adocicado do creme.
Depois ele lavaria a lata e faria um cofrinho, para ajuntar as moedas que eventualmente encontrava. Moedas que ele descobriria depois já terem saído de circulação da humanidade.
Como ele, que talvez nunca fizera parte dela.

(E os animais, sem o perigoso concorrente, voltam tranquilos a montanha)




Fonte das fotos: aterro - wikipédia; urubus - Marcello Casal, também disponibilizada na Wikipédia.






segunda-feira, 6 de junho de 2011

Rodovia dos Pioneiros








— Cem quilômetros, Henrique?
— É isso. Cem.
— É um trecho curto, mas a estrada não está boa. Será que essas laranjas não vão se perder no caminho?
— Não tem problema, Afonsinho. Não tem espaço no porta-malas mas a gente arruma no banco de passageiros. Veja só...
Henrique e o irmão pegaram duas grandes sacolas de laranjas e alinharam uma em cima da outra no banco de trás. Antes amarraram os dois volumes e deram um jeito de prendê-los até com o cinto de segurança.
Estavam em uma fazenda, propriedade dos pais de Henrique e Afonsinho, que ali viviam. Henrique costumava passar habitualmente o final de semana no local, junto com a esposa e o filho de dez anos. Nesse momento, um domingo à tarde, se preparava para voltar para a cidade.
Já no carro, malas e laranjas prontas, o filho de Henrique, no banco de trás, tenta inutilmente colocar o cinto de segurança.
— Papai, acho que o cinto está preso nas laranjas.
— Tudo bem, Carlinhos. A viagem é curta e nós conhecemos a estrada. Pode deixar pra lá.
E partiram. De fato conheciam a estrada, e ironicamente batizavam com nomes os buracos no asfalto. A BR estava vazia, o que fazia Henrique aumentar na medida do possível a velocidade do automóvel.
No entanto, não contaram com um animal que repentinamente entrou na estrada. Num reflexo, Henrique acionou violentamente os freios; o animal – um pequeno cervo – ficou paralisado no meio da pista, enquanto o veículo se aproximava.
Uma fração de segundo depois, o animal deu um salto e prosseguiu seu caminho. O carro, rodopiando, invadiu em seguida o espaço que o filhote ocupara. Metros à frente parou, transverso na pista.
Imediatamente, Henrique levou o carro até o acostamento. Então, olhou num reflexo para a esposa.
— Comigo está tudo bem — respondeu a mulher, ainda um pouco tonta.
O casal olhou para trás: manchas de sangue riscavam o vidro lateral e o banco de passageiros. O garoto estava no chão do veículo, desmaiado, e sangrava muito.
Desesperados, dirigiram o carro rapidamente para a cidade mais próxima. Estacionaram em frente a um centro de saúde e, enquanto Vanessa pegava Carlinhos no colo, Henrique explicava o ocorrido para a enfermeira da recepção.
O garoto estava inconsciente e foi levado para a emergência. Após a chegada do médico, constataram-se alguns cortes e uma fratura no nariz. Felizmente, ele não corria risco de vida; mas precisava passar a noite no local, em observação.
Já de noite, acordado e na companhia da mãe, Carlinhos acompanhava um filme na televisão quando seu pai entrou, com um copo na mão.
— Tome, meu filho, vai ser bom pra você.
— E o que é, papai?
— Suco de laranja, feito com as frutas que a gente trazia da fazenda. Como estavam bem amarradas e protegidas, elas não se perderam no acidente...






Crédito das fotos: a primeira é minha mesmo, foi tirada na estrada que liga a cidade de Cavalcante (GO) ao povoado kalunga Engenho II, um antigo quilombo que hoje vive do turismo, por causa das cachoeiras.
A segunda foto é do wikipédia.