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terça-feira, 1 de agosto de 2023

O gato

 


 

O filhote perde-se da mãe após a chuvarada que inundou casas e ruas da cidade. Abrigou-se sozinho em um muro baixo. Dois dias depois, faminto, ouviu passos em sua direção. Um homem jovem se aproximou e, com cuidado, o pegou e o posicionou na altura do peito. O gatinho olhou para cima e viu o brilho nos olhos de seu salvador. Seus olhos felinos também brilharam.

Pouco depois, o rapaz – de nome Firmino -, deixou-o em uma caixa, no quarto do hotel onde se hospedara.  Com um jaleco branco, pegou um ônibus e se dirigiu até um asilo nos limites da cidade, onde iniciaria seu primeiro dia de trabalho como enfermeiro.

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— Firmino é o nome dele? — questionou um dos velhinhos.

— É sim, capitão. — Respondeu uma mulher.

— Parece bem paciente.

— É mais fácil nós sermos os pacientes — e riu o pequeno grupo de velhinhos que observava o enfermeiro da sala de televisão.

— Vamos chamá-lo.

No asilo viviam 30 idosos, a maioria originária da própria região. Alguns abandonados pela família, outros se mudaram para lá por vontade própria, ao se verem sozinhos. O mais novo possuía 72 anos; a mais velha, 99, ou 102, segundo a contagem extraoficial da própria senhora, chamada Luana.

Foi ela própria que percebeu preocupação nas feições de Firmino.

— É verdade, dona Luana. Vim de outra cidade, estou no Hotel Trindade. Já me avisaram que mês que vem o aluguel aumentará.

— E porque não vem para cá? — perguntou capitão, Antonio, na verdade.

— Sim. — confirmou Luana. — o asilo abrigou mais gente no passado, há quartos desocupados por aqui.

— Conversarei com doutora Carla. A ideia de vocês me parece boa.

No dia seguinte, Firmino fechou a conta do hotel e se mudou, com duas malas e o gato, para uma casa desocupada do asilo. O aluguel sairia bem mais barato, e ele não gastaria com o ônibus durante a semana.

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— Que gracinha de gato!

— Gosta de animais, dona Sílvia?

— Sim, fui criada na roça, minha família criava vários animais. Quando meu marido vendeu a fazenda e nos mudamos para a cidade, trouxe comigo alguns cães. Só deixei de ter animais quando me vi sozinha. Meu marido e dois filhos morreram. Preferi vir para cá. Tenho a companhia de outras pessoas da minha idade, seria melhor que ficar só.

— Tem razão. Tome aqui seus remédios. Vou ver dona Luana agora.

— Nossa matriarca...

— É sério?

— Sim, foi a primeira pessoa a morar aqui. Esses corredores a cercam há 27 anos.

— A saúde dela está fragilizada.

— Pois não sei? Está com 99 anos. Ou 102, como prefere, ninguém sabe o certo. Tenho 80 e me sinto como filha dela.

— Já se conheciam?

— Sim, há muitos anos. Cheguei a estudar com os filhos dela. Os meninos morreram jovens ainda, em um acidente de carro. Voltavam de uma festa, justamente da cidade vizinha.

— Ela se recuperou da perda?

— Acho que a morte de alguém é como uma casa soterrada... Sabia que em Pompéia encontraram poemas eróticos e pichações em paredes que estavam cobertas pela lava do Vesúvio? As pichações não derrubaram as paredes das casas, mas a marcaram pelo resto da eternidade... — filosofou.

— Sim, concordou Firmino e saiu em seguida para ver Luana.

O gatinho, a que começaram a chamar de Quico, seguiu o dono, mas aos poucos criou amizade com todos os funcionários e pacientes, aceitando receber o carinho de todos.

— Ei, Quico!

— Dona Luana — estou começando a sentir ciúmes do gato.

— Hihi... entenda Firmino. Adoro esconder minhas mãos gélidas entre os pelinhos dele, me aquecem. Seria difícil fazer isso com você.

O calvo Firmino riu da gracinha.

— Fique à vontade com ele. Quico já foi vacinado e não fará mal a ninguém. Sílvia comentou que está meio abatida...

— Aquele menina...

O enfermeiro, riu, discreto.

— Ah, para você é uma vovozinha como todos nós. Mas nossa diferença é grande. Lembro bem quando ela, mocinha ainda, começou a estudar com meus filhos. Depois ela saiu da cidade para fazer faculdade. Meus filhos não tiveram essa chance.

— Sim, ela comentou que foi colega de seus filhos.

— Ei, Firmino, cuidando de nossa Cleópatra. aproximou-se o capitão.

— Olá, capitão. Que elogio hein, dona Luana?

— Não se engane, Firmino. Esse traste me chama Cleópatra não por causa de beleza; me acham uma múmia, né Antonio?...

— Seu Antonio, que indelicado.

— Na verdade estamos todos em situação parecida, Luana — completou Antonio, fazendo um carinho nos cabelos da mulher. — Firmino, se precisar de mim, estarei no quarto do Zeferino.

— Zeferino não é o comunista que foi preso na época do regime militar? — questionou Firmino à mulher.

— Esse mesmo, Firmino. Diz que foi torturado, inclusive.

— É estranho vê-lo como amigo de um militar.

— Sim. Mas capitão diz que nunca participou da repressão. Ele é engenheiro, trabalhava no corpo técnico do Exército. Esteve às voltas com cálculos estruturais de pontes e viadutos, e morou a maior parte do tempo no interior. A última obra de que participou foi a ponte Rio-Niterói, mas ele entrou para a reserva antes de vê-la pronta.

Saindo da companhia de dona Luana, Firmino e Quico se dirigem até o quarto de Zeferino. Viu os dois amigos jogando xadrez.

— Eu queria uma câmera para gravar isso: a amizade de um militar com um comunista.

Riram os três.

— Antonio me garantiu que nunca participou da repressão. Ele é engenheiro, construía estruturas. Nunca destruiu nada.

— Verdade. Me aposentei um pouco antes da inauguração da Rio-Niterói. E vim para essa cidade.

— Já conhecia aqui?

— Minha esposa era daqui. Com a morte dela, resolvi continuar. Lugar tranquilo, de clima ameno, era tudo o que queria. Não tivemos filhos e me vi sozinho.

— E o senhor, Zeferino? Qual sua história? — perguntou o enfermeiro.

— Sou do Rio mesmo. Fui preso na década de 60 pelos militares. Tive a sorte de ser solto após uma sessão de tortura. Resolvi que não queria essa vida de fuga e risco. Troquei a identidade e vim para a casa de um tio; passei a trabalhar no Hotel Trindade, que pertencia à ele.

— É o hotel em que estava.

— Sempre foi o melhor daqui. Mas ele morreu, e a faculdade trancada de História não me ajudou na administração do lugar, então acabei vendendo. Montei um comercinho que durou poucos anos. O que me salvou foi uma pensão do Estado. Como também já estava sozinho, aliás, sempre fui sozinho, acabei vindo para cá.

— Pronto, aqui estão seus remédios. Quico, venha. Vamos agora ver Afonsinho. Firmino sai do quarto, mas o gato permanece no quarto de Zeferino, mirando Antonio.

— Xeque-mate. — perdeu, Zeferino. Vou agora tomar um banho.

Antonio se despede de Zeferino. Quico o segue. Ao ser visto pelo velho militar, é colocado no colo e levado para seu quarto.

— Ganhou um fã, Antonio? — perguntou Luana, de bom humor novamente.

O velhinho riu e entrou no quarto com o gato.

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—Tudo bem, Afonsinho?

— Não sei... Tenho uma sensação estranha.

— Nas pernas amputadas?

— Você fala do nervo fantasma? Não é isso. Doutora Carla já tinha me explicado. Já me acostumei com essa sensação de sentir as pernas abaixo dos joelhos. É por causa dos nervos, né?

— Sim. O que foi então?

— Sei lá. Parece que algo vai acontecer. Mas em um asilo em que o mais novo já passou dos setenta, acontecem coisas com frequência, não é? Riu, irônico.

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No dia seguinte, Firmino cumpria seu plantão de madrugada, quando Zeferino chegou a seu posto.

— Tudo bem?

— Firmino, acho melhor dar uma olhada no capitão.

Firmino chega ao quarto de Antonio. Vê Quico sentado ao pé da cama, olhando o idoso, que parece muito silencioso.

O enfermeiro tenta acordá-lo e não consegue. Afere a pressão, sente o pulso e abre seus olhos, para verificar as pupilas. Liga para doutora Carla, que também morava em uma casa no terreno do asilo. Mas já comunica ao idoso:

— Sinto muito, Zeferino. O capitão se foi.

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A morte de uma pessoa próxima nos faz refletir sobre a nossa própria morte, que cada dia se aproxima mais. E em um asilo, esse tipo de reflexão é frequente.

Alguns dias depois, porém, a serenidade parece ter voltado ao lugar.

— Qual a média de mortes aqui? — em dado momento pergunta Firmino a Carla.

— Cinco ou seis ao ano.

— Mas como sempre chegam pessoas, então a população se mantém na faixa dos 30?

— Exato. — Ei, e esse gato?

Quico cruzava a porta. A médica, dona do asilo, até aquele momento ainda não o vira.

— É meu. O resgatei após aquela tempestade do mês passado. Deve ter perdido a mãe. Não se preocupe, está vacinado.

O gatinho passou de volta em frente à sala onde conversavam, e entrou no quarto de Zeferino.

— Ei, Quico! Veio me consolar?

O gatinho aproximou-se do homem, que vestia uma camiseta com a foto de Laika, a cadelinha russa que orbitou o espaço – estampada.

— Não se preocupe com a foto, não vai te morder. — e pegou o animal sem resistência deste.

À noite, Firmino tenta levá-lo para sua casa.

— Deixe ele aqui — pediu — eu cuido dele.

— Tudo bem. Boa noite.

No dia seguinte, Quico continuou na companhia de Zeferino. Saía do quarto apenas quando o idoso também saía. Os outros achavam graça da situação.

— Gatos são assim mesmo. Ele se acha o dono do pedaço, cada hora escolhe uma companhia diferente. E Firmino que se cuide, se descuidar, é o gato quem o expulsa daqui — gracejou Afonsinho.

Após o almoço, a maioria dos idosos tirava uma sesta. Firmino tinha alguns minutos de sossego nessas horas, e gostava de acompanhar o noticiário. Viu quando Quico saiu do quarto de Zeferino, sozinho. O velhinho não o acompanhou, como de costume. Firmino achou estranha a ausência do homem, era o único que ficava na sala de televisão, geralmente acompanhado de um livro de autor russo. Nos últimos dias, se deleitava com uma nova edição de Anna Karenina.

Foi verificar a situação e encontrou na entrada do quarto, no chão, o clássico de Tolstói caído. Zeferino estava deitado desajeitadamente na cama. Morto.

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No dia seguinte, ao voltarem do cemitério, Carla chamou Firmino para sua sala.

— Você me disse que Antonio e Zeferino passaram suas últimas horas de vida com o Quico.

—É verdade.

— Pode não ser coincidência.

— Você acha que o gato pode estar doente?

— Não é isso. Veja só. — disse Carla, abrindo a internet em seu computador. Surgiu na tela uma notícia. — Essa notícia trata de um gato, que vive em um hospital dos Estados Unidos. Ele vive circulando pelos corredores, e quando resolve ficar o tempo todo com alguém, geralmente a pessoa morre em menos de dois dias.

Firmino franziu a testa. Não sabia o que pensar.

— Firmino, acho que existe a possibilidade de que as pessoas, ao iniciarem o processo de morte, emitirem determinados odores, agradáveis para alguns gatos e só perceptíveis para eles. Talvez seja por isso que Quico escolheu ficar com Antonio e Zeferino nos últimos momentos de vida deles.

— É muito estranho, mas faz sentido.

— Firmino, nossos idosos não sabem desse fato nos Estados Unidos e também não fizeram essa associação com o Quico. Acho melhor nada falar com eles, para não criar apreensão se o gato escolher a companhia de alguém.

Firmino concordou com a médica. E foi com discrição que os dois observaram a súbita amizade entre Quico e Sílvia, e as consequências de tal fato para a velha senhora...

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Naquela noite, já dentro da casa em que ocupava, Firmino distraiu-se com a internet. Estava só, pois Quico permanecia nos corredores do asilo. No início da manhã, acordou com barulho de passos miúdos. Era o gato, que entrara no seu quarto, aproveitando a porta destrancada.

Quico aproximou-se, querendo o carinho do dono, algo que não pedia há alguns dias. Encarou Firmino e seus olhos felinos sorriram.

Firmino fez o mesmo, sem receio. Alguém no quarto também perceberia um sorriso discreto no rosto do enfermeiro.

Alguns segundos se passaram.

E caiu morto: o gato.