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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dona Josefa



I.
Eram três os filhos de dona Josefa.
Unidos.
E era esse um problema.

Carlos, o mais velho, era também o mais “estudado”. Após concluir a faculdade, ingressara por concurso público em uma estatal, responsável pela administração e reparos das rodovias do Estado. Alguns anos se passaram até que tivesse o prestígio necessário não apenas para influenciar decisões administrativas, mas também para manipular licitações e favorecer aliados.
Uma dessas licitações envolvia a Rodovia dos Pioneiros, estrada que ligava sua cidade natal, Recanto, a Raposas.
Carlos ia pouco a Recanto. Morando na capital a vários anos, preferia mandar a mãe via aeroporto para sua casa. Dona Josefa enviuvara há muitos anos, mas se recusava a fixar residência na casa do filho, já que possuía vários irmãos, amigos, e uma longa história naquela cidade.
Contudo, falava com orgulho do filho, bonito, estudado... Ria com ironia quando ele a aconselhava a nunca pegar a estrada, pois era perigosa.
— Veja só, isso porque ele é quem cuida delas!
E foi com grande orgulho que ela apontava a placa oficial do governo no início da Rodovia dos Pioneiros: o nome de seu filho estava lá, como um dos superintendentes do órgão.
O que nem ela e nem a população em geral acompanhavam era o jogo sujo que começara bem antes do início das obras.
Três empresas se ofereceram para assumir a obra. Contudo, uma delas já sabia de antemão que seria a vencedora: ofereceria um orçamento muito abaixo do mercado, mas usaria milhões a mais para as melhorias na estrada; notas frias e corrupção generalizada garantiriam o negócio. Evidentemente, Carlos seria um dos beneficiários.
A empresa, porém, não trabalhou de forma tão eficiente. Usou material de segunda, o que fez com que rachaduras e buracos ferissem o asfalto após os primeiros temporais. Como a rodovia também era caminho para a capital, o tráfego intenso colaborava ainda mais para agravar o problema; as rachaduras se uniam umas nas outras e, com as chuvas, a terra dos barrancos invadia aqueles espaços ferozmente, como sangue nas veias.

***
O segundo filho de dona Josefa era Mateus. Após terminar o 2° grau, prestou concurso para a polícia e começou a trabalhar em um posto policial a meio caminho entre Recanto e Raposas, cidades que distanciavam entre si aproximadamente uma centena de quilômetros.
Entrara para a corporação pelo motivo que quase todos que dela fazem parte entraram: combater a criminalidade. Contudo, os baixos salários, o sucateamento da frota e o mau exemplo de colegas acabaram enterrando essa visão, que ele percebia hoje como “romântica”. Mateus entrara no jogo das propinas e era daqueles que liberava caminhoneiros de multas frente a colaborações não-oficiais...
Alguns anos depois, já tarimbado e experiente, começou a colaborar com bandidos que assaltavam ônibus nas proximidades, informando a natureza e os horários dos veículos que ali passavam, e retardando a lavratura do boletim policial. Como pagamento, recebia uma porcentagem do que a quadrilha conseguia.
Com base nesse esquema, ele conseguiu comprar uma chácara, que, por questão de segurança, colocara no nome de outra pessoa: um laranja.

***
Fernando. Era esse o nome do caçula de dona Josefa. O temporão já alcançava as duas décadas de vida mas ainda estava no 2° grau, já que repetira algumas séries. Tinha sido um bom aluno até os 15 anos, quando passou a andar com jovens delinqüentes e fumar maconha. O conteúdo escolar ele já não aprendia com tanta facilidade, e o ápice de sua curva descendente começou quando também passou a praticar crimes; começara com pequenos furtos em estabelecimentos comerciais, evoluindo para crimes mais organizados e violentos. Dizia que era movido pela “adrenalina” e usava o produto dos roubos para comprar drogas e patrocinar noites com mulheres.
Ele e alguns companheiros formaram uma quadrilha que assaltava ônibus; preferiam agir na auto-estrada, de madrugada, pois desta forma só atrairiam a atenção de um outro chacareiro às margens das rodovias (que, de antemão, já sabiam que não poderiam testemunhar).
Como já dito, os irmãos eram unidos e cada um sabia das atividades do outro. Faziam voto de silêncio sobre as ilegalidades de cada um. Nas poucas vezes em que Fernando conseguiu ser preso pela polícia após os assaltos, seus irmãos mais velhos (primeiro o policial e, se preciso, o mais velho) interferiam com advogados para que fosse solto. Nunca chegou a ser julgado: o andamento dos inquéritos passava do prazo e o processo era então, extinto.
Dona Josefa jamais desconfiara de algo (ou então, não manifestava tal desconfiança), mesmo porque os assaltos de Fernando e seu grupo eram cometidos nas proximidades de São Vítor, cidade localizada a mais de 200 quilômetros de Recanto.

II.
— Josefa, minha amiga, como vão as coisas?
— Oi, “cumadi”! Aqui em Recanto tudo ótimo: o Mateus continua na polícia e o Fernando anda meio parado, de vez em quando arranja uns bicos, principalmente lá na Expresso Gouveia. Ele é mecânico, sabe? O mais velho continua na capital.
— É bom saber que os meninos estão bem.
— Pois é, Maria, o que mais me preocupa é o Mateus. Esse negócio de fiscalizar estrada pra pegar bandido não me agrada nem um pouco, mas fazer o que, não é? Alguém precisa combater a criminalidade. E aí em Silvestre, como vão as coisas?
— Muito bem, inclusive te liguei para fazer um convite: a Aninha, minha netinha mais nova, vai fazer um ano e eu gostaria muito que você viesse pra festa, afinal, você não é só madrinha da Carla, mas também amiga nossa a muito tempo, não é?
— Ô! Nos conhecemos há uns 40 anos, quando o seu marido e o meu vieram trabalhar nessa estrada que agora o meu filho mandou reformar. Uma vida...
— Pois é. E então, você vem?
— Mas é claro! Quando será a festinha?
— No próximo domingo, à tarde.

***
— Firula.
— Fala.
— O que você acha da gente fazer um trabalhinho? É final de ano e o pessoal costuma viajar mais...
— É... eu tava pensando nisso mesmo. E quem a gente chama?
— A galera de sempre: eu, você, Tomás e Fonseca; vocês três tomam o ônibus e eu acompanho com o carro atrás.
— Roubado, né?
— Lógico.
— Tá bom. Eu vou chamar os dois pra gente conversar melhor. Pode ser lá na sua casa mesmo, naquela mesa de dominó no fundo do quintal?
— Pode, lá é isolado e ninguém escuta a gente.
— Tá bom. Às sete estaremos lá.
Firula se despede e faz menção de ir pra casa. Mas se vira repentinamente e retoma o diálogo.
— Fernando?
— O que?
— Pede pra dona Josefa fazer aquele bolo de trigo que eu adoro.
Fernando apenas riu e voltou a tomar a cerveja que bebericava em um bar.

***
Sete da noite. Firula, Tomás e Fonseca chegam à casa de Fernando, sendo recebidos na porta por dona Josefa, que já os conhecia de longa data.
— Oi, meninos. O Fernando tá colhendo umas bananas lá no fundo do quintal, podem ir lá.
Antes de entrarem, ela chamou Firula e lhe entregou um prato com fatias de bolo de trigo.
— Leva lá, menino. Se vocês quiserem mais alguma coisa é só pegar na geladeira. Agora eu vou na sala assistir minha novela.
Firula agradeceu e junto com os outros foi para o fundo do quintal. Encontraram Fernando apreensivo.
— Caiu uma barreira de terra na nossa área. Tá chovendo muito por lá e não tem como fazer o trabalho agora.
— Só se a gente ficar por aqui mesmo — rebateu Tomás.
— Tá doido? Fazer assalto perto de casa?
— Qual a diferença? A gente vai encapuzado mesmo...
— O Tomás tem razão — interveio Firula — uma vez ou outra não tem problema a gente atuar por aqui mesmo. É até melhor, a estrada foi reformada e fica mais fácil fugir.
— Essa reforma ficou uma merda! Já tem uns buracos aparecendo no asfalto.
— Nada que se compare à estrada de São Vítor.
Fernando pensou um pouco e, no fim, acabou concordando com os colegas.
— É, não tem jeito mesmo, Recanto só tem duas saídas, e uma delas a gente vai usar pra roubar o carro antes, não é?
— Pois é, o procedimento vai ser o mesmo, só muda o cenário: Fonseca e eu vamos até Flor de Maio, de ônibus, roubamos um carro à noite e aí pegamos vocês dois na casa do Tomás. Pegamos a estrada pra Raposas e aí, uns 5 quilômetros depois do posto policial, a gente espera um ônibus. Você sabe que o trânsito nessa estrada é forte, mas de madrugada, a coisa fica mais fácil.
— Tá bom. ¬— concordou Fernando, que acrescentou — O canal é pegar um ônibus da Expresso Gouveia. Trabalhei um tempo na oficina deles e sei de todos os horários. Eu vou dar uma conferida pra gente não precisar ficar muito tempo dando bobeira, parado na estrada.
— E quando poderia ser? — perguntou Fonseca.
— No sábado, à noite, a gente começa. Vou conversar antes com meu chegado da polícia, pra ver se não vai ter alguma operação especial deles na hora...
Todos concordaram com o cronograma. Era ainda quinta-feira e daria tempo de uma mudança nos planos caso fosse necessário.
E na sala de casa, dona Josefa pensava: em vez de ir pra Silvestre no dia da festa, iria no sábado, pra poder conversar um pouco mais com as amigas que ali possuía.

***

Dona Josefa resolveu não comentar sobre a festa em Silvestre, pois os três filhos não gostavam que ela pegasse a estrada.
No sábado, à noite, estava sozinha em casa quando deixou um bilhete na mesa da sala avisando de sua viagem; prometia ligar no dia seguinte.
No mesmo momento, Fernando e Tomás, na casa desse último (que morava sozinho), aguardavam a volta de Firula e Fonseca, que retornavam de Flor de Maio com o veículo roubado.
Dona Josefa chega a rodoviária de Recanto e embarca no Expresso Gouveia às 8 da noite. A viagem para Silvestre demoraria cerca de 3 horas.
Dentro do ônibus, encontrou alguns conhecidos. Entre todos, a mais íntima era Lúcia:
— Vai fazer compras em Silvestre? — perguntou dona Josefa.
— Sabe como é: lá é mais próxima da capital e muita coisa é mais barata do que aqui. Sem contar o passeio que a gente faz!
E assim iniciaram o diálogo que só terminou às 10 da noite, quando bruscamente o motorista freou.
— Calma gente! Tem um monte de carro parado na frente.
— O que aconteceu? — perguntou um passageiro.
— Pela chuva dos últimos dias e pela sujeira na pista, deve ter sido uma barreira que caiu.
Sua suspeita confirmou-se minutos depois, quando outro passageiro desceu do ônibus para averiguar o ocorrido.
O motorista ficou pensativo por alguns instantes e, no fim, sentenciou:
— Não tem jeito, gente. Vamos ter que voltar pra Recanto, e de lá pra Silvestre via Raposas.
As três cidades formavam geograficamente uma espécie de triângulo, onde cada uma era um vértice.
Dizendo isso, o motorista deu meia volta e retornou a Recanto, onde chegou por volta de 11 da noite. Não parou na rodoviária e seguiu direto pra Raposas, o segundo vértice do triângulo.
No mesmo horário, Fonseca e Firula já tinham voltado de Flor de Maio com o carro roubado. Chegaram à casa de Tomás e pegaram os companheiros. Rumaram para Raposas e, poucos quilômetros depois do posto policial, pararam no acostamento da estrada, onde aguardavam o início da ação.

***

III.
Em Recanto, a sobrinha de dona Josefa, que possuía a chave da casa, entra na sala e encontra o bilhete da tia, que informava apenas sobre a realização da viagem, sem especificar o motivo. Curiosa, ela resolveu ligar para o primo.
— Oi, Mateus, é Angélica. Tia Josefa foi pra Silvestre, você sabe porque? Aconteceu alguma coisa?
— O que?? Ela foi pra Silvestre hoje??
— Ela deixou um bilhete dizendo isso, que ia pegar um ônibus agora à noite e amanhã ligava pra cá.
— Meu Deus...
— Você sabe de alguma coisa?
— Não... não sei de nada... ela deve ter ido visitar alguém. — respondeu, nervoso.
— Espero que sim. Bem, eu vou indo.
Mateus sequer se despediu. Recolocou o fone silenciosamente no lugar.
“Fernando comentou que estava para agir esse final de semana”.
Pegou o celular e ligou para o irmão; o aparelho estava fora de alcance. Resolveu deixar uma mensagem gravada. Não sabia onde seria a ação de Fernando, o que o deixou ainda mais apreensivo.
Nesse momento Fernando e os outros ainda estavam parados no acostamento, entre Recanto e Raposas. Fernando assumira a direção do veículo e vigiava a estrada pelo retrovisor. A idéia era tomar um veículo da Expresso Gouveia que passava por ali de madrugada, repleta de passageiros para Raposas. Se o ônibus passasse acompanhado de outro veículo, escolheriam então algum outro, desde que estivesse trafegando sozinho e pudessem agir com segurança.
À 1 da manhã, o silêncio da estrada foi cortado pelo som de um motor.
— Olha lá, olha lá! Tá vindo um!
— Amarelo, antigo... é da Expresso Gouveia — sentenciou Fernando.
O ônibus passou e eles começaram a segui-lo. Nem perceberam que o veículo não era o que seguia para Raposas, mas isso, na verdade, em nada alteraria seus planos. Metros à frente, deram tiros para o alto, obrigando o motorista a parar. Como combinado, todos, já encapuzados, entraram no veículo, com exceção de Fernando, que começou a segui-los no carro.
Fonseca ficou na frente vigiando o motorista, Tomás foi para o fundo e Firula anunciou o óbvio:
— Todo mundo quietinho e passando tudo! Se colaborarem, isso acaba rápido!!
Com uma mochila na mão esquerda e um revólver na direita, foi percorrendo o corredor fazendo a coleta. Na metade do caminho, assustou-se com a presença de dona Josefa. Interrompeu seus passos e olhou firme em seus idosos olhos castanhos. Dona Josefa fez o mesmo.
“Ela me reconheceu” pensou Firula.
Acabou se distraindo e um passageiro que estava ao seu lado tentou-lhe pegar-lhe a arma.
— Me larga, porra!! — Gritava.
Tomás e Fonseca não sabiam o que fazer, pois pela primeira vez uma vítima reagia de forma mais ativa. Poderiam desde ficar paralisados como atirar a esmo no meio do ônibus.
Ficaram paralisados.
O mesmo não aconteceu com Firula, que não viu alternativa senão se desvencilhar do passageiro. Enfim, puxou a arma e atirou em sua direção. Não tinha certeza que o matara e não ficaria ali pra saber. Chamou os companheiros, obrigou o motorista a parar e desceu correndo do ônibus.
Assustado com o tiro, Fernando logo perguntou o que ocorrera.
— Depois te falo, agora vai correndo pra Recanto!

***

Chegando na cidade, foram para a casa de Tomás. Lá, Fernando ficou sabendo de todo o ocorrido. Firula, contudo, não teve coragem para contar sobre a presença de dona Josefa no ônibus.
— Só falta o cara ter morrido. — lamentou o caçula da velha senhora. — Isso vai colocar a imprensa e a polícia toda atrás da gente. Não tem como evitar.
Ligaram a televisão, mas nada foi noticiado. Na verdade, sabiam que as notícias só chegariam no outro dia, com o boca a boca dos passageiros, muitos deles certamente moradores de Recanto.
Nesse ínterim, Fernando verificou o celular; havia uma mensagem gravada do irmão. Gelou ao ouvi-la:
“A mãe foi para Silvestre hoje, de ônibus. Não aja”.

***
IV.
Vinte e quatro horas se passaram.
Em Recanto, só se comentava da morte do doutor Lucas e de dona Josefa. O primeiro foi alvejado por um bandido após tentar tomar-lhe a arma. O tiro disparado varou o corpo do homem, atravessou o banco de espuma e alojou-se no coração de dona Josefa.
Em volta do seu caixão, no velório, os três irmãos choram. Lúcia, a última pessoa que com ela conversara, se aproxima.
— Sei como vocês estão sofrendo. Mas gostaria que soubessem do carinho que ela tratou vocês no último diálogo que trocamos, antes daqueles bandidos entrarem.
— E o que ela disse? — perguntou Fernando, lacrimejante.
— Eu lhe perguntara se ela tinha medo de viajar por aquelas estradas, e ela me respondeu:
“Medo de que? Vou viajar na estrada que um de meus filhos reformou, que o outro vigia, e num ônibus em que o caçula trabalhou. Como me sentir mais protegida?...”

sábado, 5 de junho de 2010

Depressão (Depresión)



Seguiu mar adentro.

Até as sereias lhe darem abrigo.




Inspirado na escritora Alfonsina Storni: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfonsina_Storni





VERSIÓN EN ESPAÑOL



Seguió mar adentro.
Hasta el abrigo de las sirenas.




Inspirado en la escritora Alfonsina Storni:
http://es.wikipedia.org/wiki/Alfonsina_Storni