O destino me enviara recentemente àquela estrada nas montanhas; desde então, dia e noite a percorria sozinho no carro. Eventualmente dava caronas para moradores da região, e através deles descobri a história do lugar.
No topo de uma daquelas montanhas, no início do século vinte, surgiu uma pequena vila militar, com um forte onde se vigiava o horizonte. A má qualidade da terra encareceu a permanência dos militares, visto que todos os mantimentos precisavam vir da planície; poucos anos depois, se transferiram para outra região. O local, que passou a ser conhecido na região como Vila Um, permaneceu abandonado, sendo usado apenas como base de apoio por eventuais alpinistas e moradores da região, que cortavam lenha nas proximidades.
Quilômetros abaixo, surgiu posteriormente a Vila Dois, hoje habitada por não mais que mil pessoas, vivendo da agricultura e de um turismo incipiente. Após tal vila, existiam algumas outras, a beira de uma estrada de terra que levava a rodovia principal da região.
Na noite de uma sexta-feira, próximo a Vila Um, vi um rapaz no acostamento, pedindo carona. Loiro, forte, cabelos curtos, mancha escura na face, e com aproximadamente vinte anos de idade; devido a noite escura, não percebi muitos detalhes da roupa e nem da mochila que carregava. Embora soubesse que a carona é algo comum em cidades e vilas do interior, mas ainda amuado pelas paranóias da cidade grande, em que a maioria dos bandidos que pedem carona são homens e jovens, não parei e segui meu caminho. As caronas que dera anteriormente se resumiram a idosos e mulheres.
Contudo, alguns quilômetros depois, mais abaixo na montanha, na Vila Dois, tive a clara impressão de ver o mesmo rapaz parado. Igualmente louro, forte, jovem, de cabelos curtos e uma mancha na face.
Lembrei-me das lendas urbanas que relatavam sobre fantasmas pedindo carona em rodovias; em uma primeira versão, apareciam em pontos diversos da estrada, como a perseguir determinado motorista; em outros relatos, quando alguém aceitava transportar a pessoa, esta pedia para saltar na frente do cemitério ou em uma casa, onde posteriormente, se descobriria, através de uma foto, tratar-se de um familiar morto.
Acossado pela curiosidade, decidi parar o carro.
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O rapaz entrou no veículo e, após aparentar surpresa ao me ver, olhou para a frente e disse apenas o destino.
“Fico no quilômetro oito, por favor”.
Tentei puxar conversa, mas respondia com frases lacônicas e em momento algum olhou em minha direção. Parecia nervoso e ansioso para chegar logo ao destino.
Relembrei as tais lendas urbanas ao passarmos em frente a um antigo cemitério usado pelos primeiros moradores da região. Desativado há duas décadas, raríssimas vezes era ainda visitado por algum parente dos falecidos. Contudo, ao passarmos em frente ao local, o rapaz apenas fez o sinal da cruz e... permaneceu no veículo.
Minutos depois, chegamos ao quilômetro oito, onde uma pequena vila, de não mais que vinte casas, se assentava.
“Fico naquela casa amarela, na esquina”, informou o carona.
Parei o carro, ele agradeceu sem me olhar e desceu. Curiosidade ainda tenho, mas não tive a chance de procurar posteriormente a casa para verificar a possibilidade de ele ser um morador falecido.
Olhei para a frente e vi a antiga placa que identificava a vila sem nome oficial; era de madeira, pintada pelos próprios moradores, e o material já apodrecido a fazia pender para o lado, deixando o oito na horizontal. Enquanto o rapaz mexia com uma mala, segui em frente.
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Após certificar-se do afastamento do carro, o rapaz da carona, um fotógrafo da própria região que estivera na Vila Dois tirando fotos para uma revista de turismo, parou de fingir que mexia na mala. Levantou-se ao ver os faróis desaparecerem na escuridão. Passou reto pela frente da casa amarela, na verdade um restaurante desativado onde ninguém entrava há mais de dez anos. Virou a esquina e entrou em um sobrado a alguns metros de distância. A sua casa.
Dirigiu-se a um depósito, onde procurou o jornal da região, publicado semanas antes. Encontrou o exemplar, localizou uma matéria com foto e ligou para o irmão gêmeo, também um fotógrafo, que estivera na Vila Um documentando o passado da região; àquela hora poderia estar a beira da rodovia, esperando carona. Alertou-o a não aceitar carona de um homem dirigindo um Gol, modelo antigo, de cor verde: o veículo que o trouxera até ali. Que voltasse a pé ou conseguisse carona com outra pessoa; na volta, lhe explicaria o porquê.
Deixou o jornal na mesa da sala e sentou em uma poltrona, de onde só saiu até a chegada do irmão, uma hora depois.
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No Gol verde, o motorista ainda percorria a estrada, que dava a volta na montanha. Passou novamente em frente à Vila Um, mas o primeiro rapaz (ou seria o mesmo?) já não se encontrava. Antes de chegar em frente ao cemitério, passou por uma ponte. Não poderia perceber, mas no fundo do rio logo abaixo havia um Gol verde, capotado há alguns dias, com apenas um ocupante, um homem. Apesar da morte na rodovia, a vítima não se machucara tanto, e seu rosto possuía apenas um grande corte nas têmporas. O mesmo corte que assustara o rapaz da carona.
Apesar da ligação para os bombeiros do jovem fotógrafo, que o reconheceu na fotografia do jornal, seu corpo permaneceu perdido nas águas do rio, sendo consumido pelo tempo; sua alma, perdida nas curvas da estrada.
hehehe, surpreendente. bacana.
ResponderExcluirGlauber,
ResponderExcluirseu texto tem uma atmosfera de Edgar Allan Poe.
Bem interessante. Parabéns.
Renê.
Eu já havia comentado ele lá no Bar, realmente muito bom!
ResponderExcluirParabéns, bom conto, o final não é previsível. Lembrei de um conto que escrevi (e perdi) para uma aula de redação na época da escola.
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