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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Maria Baderna





Como bom atleta de final de semana, encontrava-me em minha corrida vespertina, realizada somente aos sábados (isso em caso de tempo bom). Para variar o caminho, saí de casa e não fui em direção ao parque. Meu destino naquele dia foi o campus da universidade.
Desacostumado com o esforço físico e castigado mais ainda pelo vigoroso Sol daquela tarde, já punha a língua de fora após dois quilômetros de percurso que me pareceram meia maratona.
Meu fôlego aumentou um pouco após a inesperada garoa que começou a cair. Contudo, a simpática chuvinha transformou-se em pouco tempo numa ameaçadora tempestade (efeitos do el niño...). Parei de correr e voltei-me num círculo a procura de um abrigo. A algumas dezenas de metros reconheci o imponente prédio da biblioteca universitária. Dirigi-me para lá correndo, gastando as últimas energias que possuía.
Cheguei à entrada do prédio arfando como uma pessoa afogada, mas procurei disfarçar haja vista a presença de simpáticas alunas no local. Fiquei na companhia delas que, como eu, esperavam a chuva diminuir um pouco para saírem do lugar.
Meus planos vieram por água abaixo (literalmente) quando uma rajada de vento praticamente me expulsou para dentro da biblioteca. Cheguei a óbvia conclusão de que, de bermuda e camiseta, debaixo daquela chuva e açoitado pelo vento, o máximo que conseguiria, se ficasse ali exposto, seria uma pneumonia.
Entrei no prédio e fiquei andando durante algum tempo pelos seus corredores, a fim de secar-me mais rápido. Entrei numa lanchonete e pedi um café. Pouco depois, já seco e aquecido, resolvi passear um pouco por entre os livros; sempre gostei de ler e queria descobrir as novidades.
Passeando por entre as estantes, deparei-me com um antigo livro de biografias, mas com uma particularidade: apenas mulheres estavam ali relacionadas, e todas tinham vivido no Brasil. Tirei-o da estante e me sentei em uma daquelas cabines que os universitários usam para o estudo.
Percorrendo o índice, encontrei as mais famosas personalidades brasileiras do sexo feminino: princesa Isabel, Bárbara Heliodora, Cecília Meireles e Maria Bonita, dentre tantas outras. E naquela extensa lista, reparei também em um nome que nunca ouvira falar: Maria Baderna.


Interessei-me de imediato por aquela história, afinal, já conhecia um pouco da biografia das outras mulheres.
“Com um nome desse, devia ser um poço de confusão, ou mesmo uma criminosa”, pensei.
Abri o livro na página indicada e, ao contrário das outras personalidades, não havia uma foto ou mesmo desenho para ilustrar a biografia. Era, sem dúvida, uma mulher do povo. Uma pena, pois queria ver o rosto daquela “baderneira” que merecera até mesmo um verbete de dicionário.
Pois bem, inicialmente descobri que Maria nascera na Europa em 1825, provavelmente na França ou Itália. Envolveu-se em movimentos políticos já na juventude e, em 1850, resolveu mudar-se para o Brasil. Após passar alguns meses em um navio, aportou no Rio de Janeiro, onde fixou residência.
“Até aqui, nada demais”, estranhei na hora.
E continuei: Maria se tornou dançarina, e deve ter alcançado algum destaque, pois segundo alguns, provocava desavenças e brigas entre os homens. Daí ter recebido o apelido de Maria Baderna.
Outros pesquisadores, no entanto, garantem que o apelido veio de outra forma: Maria também era abolicionista, e chegou a organizar quilombos no interior da província do Rio de Janeiro; ela participava dos movimentos sociais e encontros populares, que evidentemente reuniam uma multidão de pessoas ansiosas por reformas sociais e a própria liberdade. Com os nervos “à flor da pele”, era natural que eventualmente alguns desses eventos terminasse de forma mais agitada. As velhas raposas não perderam tempo em batizar a dançarina com esse apelido, numa clara maneira de tentar depreciá-la.
Interrompi a leitura e passei a refletir. Sem dúvida, a segunda versão me parecia mais convincente, afinal, a injúria é uma das formas mais eficientes para tentar anular a influência de uma pessoa que vai contra a ordem estabelecida e os interesses alheios. Para a chamada elite, pessoas com consciência política e baderneiros são simplesmente sinônimos.
Por fim, descobri que Maria morreu ainda jovem, em 1870. Tinha 45 anos e estava no interior da então província, talvez em um dos quilombos que ajudou a criar.
Fiquei alguns instantes imerso naquela pequena história, que mal ocupava uma página do livro e contrastava diretamente com a extensa biografia das princesas, nobres e grandes artistas ali descritas. Aquela simples página no meio de tantas para mim representava muito bem o que o povo significa na vida da nação como um todo: uma pequena folha de papel que muitas vezes passa despercebida.
Olhei em volta e percebi uma jovem paraplégica que procurava algum livro na estante; mais ao canto da sala, um senhor negro catalogava revistas para a seção de periódicos. Imaginei como Maria Baderna se contentaria ao perceber que, embora os negros, deficientes físicos (e outras minorias) ainda sofressem com o preconceito, eles já estavam livres, ao menos, dos grilhões de ferro, físicos e palpáveis. Restavam agora lhes libertar dos grilhões subjetivos, dos preconceitos e das condições menos favoráveis de vida. Mas isso, já era tarefa nossa.
Levantei-me após algum tempo e deixei a obra fechada sobre a mesa. Quando já saía do recinto, retornei repentinamente, voltei a abrir o livro naquela biografia, e o deixei aberto sobre uma mesa central: queria que outras pessoas descobrissem a história daquela interessante e injustiçada mulher.
E ao sair da biblioteca (a chuva já cessara), caminhando pelo campus em direção a minha casa, perguntei para mim mesmo qual seria o apelido mais adequado para aquela dançarina européia que, na casa dos 20 anos, se viu em um país tropical lutando pelo fim da escravidão:

Maria: Baderna ou VISIONÁRIA?








Obs: este conto foi publicado na antologia "Um nome de mulher", em 2002, sendo o 14º lugar do Prêmio Mário Cabral, organizado por Malva Barros, do extinto site www.armazem.literario.nom.br.


A fotografia que ilustra o conto pode ser encontrada em sites diversos da internet; basta procurar por Marietta Baderna nos sites de busca. O "Maria" foi um aportuguesamento de seu verdadeiro nome.

2 comentários:

  1. Oii
    Escrevi, escrevi, mas não fiquei satisfeita, e daí estou escrevendo de novo.
    Gostei deste post, gosto muito de etmologia e acho incríveis as palavras que vêm de nomes de pessoas. Tipo orkut, sandwich, baderna... deve ter mais...
    Gostei do seu espaço e agradeço sua visita no meu!
    Queria incluir o link do seu blog no meu blog roll, posso?

    Abs
    Macabéa

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  2. Esqueci o I na palavra etimologia...
    rs
    foi mal...

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